MENSAGEM

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

estou farto de semideuses!


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


FERNANDO PESSOA.

ESTOU TONTO.


Estou tonto,

Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,

Ou de ambas as coisas.

O que sei é que estou tonto

E não sei bem se me devo levantar da cadeira

Ou como me levantaria dela.

Fiquemos nisto: estou tonto.

Afinal

Que vida fiz eu da vida?

Nada.

Tudo interstícios,

Tudo aproximações,

Tudo função do irregular e do absurdo,

Tudo nada...

É por isso que estou tonto...

Agora

Todas as manhãs me levanto

Tonto...

Sim, verdadeiramente tonto...

Sem saber em mim o meu nome,

Sem saber onde estou,

Sem saber o que fui,

Sem saber nada.

Mas se isto é assim é assim.

Deixo-me estar na cadeira.

Estou tonto.

Bem, estou tonto.

Fico sentado

E tonto,

Sim, tonto,

Tonto...

Tonto...


FERNANDO PESSOA.

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos.


Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,

Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.

São felizes, porque não são eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,

Vivem entre vasos de flores,

Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,

Cantam sempre, sem dúvida.

Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.

Assim tem que ser onde tudo se ajusta —

O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?

Quais outros? Não há outros.

O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,

Ou, quando se abre,

É para as crianças brincarem na varanda de grades,

Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

Os outros nunca sentem.

Quem sente somos nós,

Sim, todos nós,

Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Nada? Não sei...

Um nada que dói...


FERNANDO PESSOA.

o dia em que Deus cumpriu a sentença dos réus.


Bilhões de pessoas estavam espalhadas por uma grande planície, diante do trono de Deus. Alguns do grupo mais da frente conversavam calorosamente. Não falavam com reverência, mas em aberta beligerância. “Como Deus pode nos julgar?”, perguntavam. “O que ele sabe sobre o sofrimento?”, gritou uma loira. Arregaçando a manga de sua blusa, mostrou um número tatuado em um campo de concentração nazista. “Sofremos medo, açoites, torturas, morte”, continuou. Em outro grupo, um negro baixou o colarinho. “Que tal isto”?, exigiu mostrando uma feia queimadura provocada por cordas. “Fui linchado apenas por ser negro. Sufocamos em navios escravos. Fomos arrancados do convívio de nossos queridos, trabalhamos debaixo do chicote até que a morte nos aliviou”.Grupos semelhantes se articulavam em toda aquela planície. Cada um se queixava de Deus pelo mal e sofrimento que permitiu no mundo que cle mesmo criara. “O que Deus sabe sobre o que a humanidade suportou? Como Deus é feliz por morar no céu. Lá não há lágrimas, medo, fome, ódios. Deus leva uma vida bem confortável”, afirmavam.Então cada grupo decidiu enviar um representante diante de Deus; escolhido pelo que mais sofreu. Havia um judeu, um negro, um marginalizado da Índia, um bastardo, uma japonesa de Hiroshima, um preso de um campo de concentração russo, uma mulher africana contaminada com HIV, cujos filhos morreram de fome.Antes se reuniram no centro daquela vasta planície para se organizarem. Chegaram a um consenso. Antes que Deus se qualificasse para julgá-los, precisaria experimentar o que eles experimentaram. Decidiram sentenciá-lo: que ele viva na terra como homem.Mas como era Deus, estabeleceram algumas salvaguardas. Ele não poderia se valer de seus poderes divinos para se proteger. “Que nasça judeu; que a legitimidade de sua paternidade seja questionada e que ninguém saiba com segurança quem foi o seu pai; que lidere uma causa tão justa e tão radical, que atraia o ódio e a condenação dos poderosos; que a religião oficial se esforce para eliminá-lo; que tente descrever o que nenhuma pessoa jamais provou, ouviu ou percebeu; que tente comunicar Deus aos homens; que seja traído por um dos seus amigos mais queridos; que seja indiciado com provas falsas; que seja julgado por um júri preconceituoso e que o seu juiz seja um covarde; que experimente o que é sentir-se completamente abandonado por todos; que seja torturado e que morra. Mas que sua morte seja a mais humilhante, e que morra ao lado de ladrões ordinários.À medida que cada líder anunciava a sua sentença, um murmúrio se espalhou pela planície. A aprovação parecia unânime! Mas quando o último expressou a sua sentença, houve um profundo silêncio. Ninguém se atreveu falar, ninguém se moveu. De repente, todos perceberam: – Deus já cumprira a sentença dos réus.